sábado, fevereiro 13, 2010

Por uma leitura sócio‐histórica da etnicidade em Moçambique (4)

Continuacão da série

Por Sérgio Machava

“É preciso matar a tribo para construir a nação”

No período pós‐colonial, a Frelimo definiu a discriminação com base na cor, tribo ou religião como um dos seus combates prioritários. As palavras de ordem eram “abaixo o racismo, o tribalismo, o regionalismo, o divisionismo, etc.” Mas como foi feito esse combate na prática?
À semelhança de outros regimes africanos que defendiam o partido único em detrimento do pluralismo político e social ― oficialmente por medo de acordar ou exacerbar os particularismos identitários ―, ou, como diziam alguns líderes africanos, por temer que cada grupo étnico criasse seu próprio partido, a Frelimo negava todo o tipo de diversidade: religiosa,étnica, racial, politica, linguística, social, entre outras. Tal negação também resultava da experiência dos conflitos étnico‐tribais que este partido tinha conhecido durante a luta anticolonial, e era feita em nome de uma ideologia que defendia a criação do “Homem Novo”, o qual devia estar livre dos seus “maus hábitos”, que punham em causa a moçambicanidade. Assim, a língua portuguesa foi utilizada como um dos veículos importantes para construir a identidade nacional, marginalizando‐se completamente as línguas locais, de tal sorte que foi interdita aos alunos falar as línguas locais nas escolas. Anúncios que tornavam obrigatória a língua portuguesa nas instituições públicas foram colados. Os nomes das regiões e clubes desportivos com conotação étnico‐regionais foram abolidos. Foram os casos, por exemplo, da antiga circunscrição dos Muchopes na província de Gaza, que tornou‐se Manjacaze, e da dos macondes, em Cabo Delgado, que passou a designar‐se por Mueda. Não havia macuas, machanganes, wayaos ou macondes, havia apenas moçambicanos16.
Era preciso “matar a tribo para construir a nação”, dizia Samora Machel, apoiando‐se numa expressão do primeiro presidente Ganês, Nkwame Nkrumah. A tribo, considerada arcaica e “feudal”, era vista como incompatível com o objectivo de construir a nação, com a unidade nacional, e desapareceria com a emergência do “Homem Novo”, alfabetizado, falando português e vivendo na aldeia comunal. Neste período, a existência de outros actores políticos, fora da Frelimo, era interdita, e os que tentaram fazê‐lo foram desencorajados ou desqualificados. Os que não estavam de acordo com a Frelimo deviam ou expor‐se à repressão, ou exilar‐se. Um só sindicato, uma só organização da mulher e uma só organização da juventude, todos obedecendo a linha do partido, foram criados. A divisa era um só povo, uma só nação, uma só cultura, uma só língua, um só partido17.
Esta estratégia não iria acabar ou resolver o ressentimento dos moçambicanos do norte do Save, que sempre queixaram‐se do tribalismo dos dirigentes sulistas da Frelimo. Pelo contrário, acentuou‐a, em grande medida devido a incapacidade do Estado em promover o desenvolvimento e, consequentemente, em redistribuir os recursos (políticos, económicos), sobretudo para os moçambicanos do norte do Save.
Por exemplo, aquando do fenómeno chupa‐sangue que quase paralisou a Zambézia em 197818, o governo local indicava o tribalismo como sendo um dos factores que teria levado a manifestações violentas no distrito costeiro de Pebane, que, oficialmente, teriam provocado um morto, sete feridos e vários detidos. Segundo o governo zambeziano, na sua ira, as pessoas perguntavam‐se porque todos os responsáveis distritais locais (do administrador até aos directores distritais, inclusive o chefe das Lojas do Povo19) não eram zambezianos, quando localmente havia gente capaz para ocupar estes postos. Esta reacção não era de admirar num contexto em que os zambezianos se consideravam excluídos e marginalizados pelo regime excessivamente sulista, como explica o arcebispo local, Dom Filipe Governo:

“No princípio, a Frelimo enviou quadros do sul, então os zambezianos interpretaram isso como um colonialismo do sul. Isso fez recuar a Zambézia em relação à Frelimo. Mesmo os administradores eram do sul, o chefe de apoio e controlo, mesmo o chefe do posto, eram do sul. Mesmo na Universidade [Eduardo Mondlane, principal universidade pública no Sul] quando o professor sabe que este estudante vem do Centro ou do Norte [do país], a probabilidade de ele [o estudante] chumbar é maior que a de um estudante do sul...”20

A Resistência Nacional de Moçambique (Renamo)21, cujos dirigentes eram maioritariamente do Centro de Moçambique, na sua guerra contra a Frelimo que durou cerca de 16 anos, dizia entre outros, bater‐se contra o tribalismo deste partido.
Esta visão da Frelimo ― que confundia unidade e unicidade ― não só levou a recusa da diversidade das identidades e de interesses no seio da sociedade moçambicana, como também criou conflitos entre diferentes grupos. Era a procura da unidade a todo o preço em nome de uma classe operária, ela mesmo mistificada e virtual, sublimada no Estado, ignorando os diferentes conflitos entre os diversos segmentos da sociedade moçambicana.

6 comentários:

Linette Olofsson disse...

Muito interessante esta parte do artigo do Sérgio.
O fenómeo "Chupa Sangue" ainda continua.

Até hoje a Frelimo envia pessoas do Sul para dirigir a Zambezia.
É também bem verdade hoje, que o sentimento dos Zambezianos é o mesmo.

Façam um levantamento dos Sulistas a dirigir a Zambézia nas diversas areas governamentais projectos etc.

2 pequíssimos exemplos:

1-há tempos a RM enviou um fincionário para dirigir o emissor provincial da zambezia; nessa altura era membro do parlamento e fiquei intrigada dos porques de se enviar uma pessoa do sul para dirigir o emissor?
O meu sentimento foi de uma zambeziana, nascida e criada na zambezia, apesar de não pertencer a alguma tribo,não deixo de ser zambeziana, com todo o respeito e carinho a terra onde me fiz ser Humano, continuo a defender a minha provincia e minha região.

2 Numa aldeia remota do distrito de Mopeia chamada Marcação, existe um projecto de educação financiado pela Espanha, se a memoria náo me trai...
Este projecto de educação é dirigido por um director do sul.
Perguntei-lhe se não era dificil sair de Maputo e "viver num fim do Mundo" como aquele, deixando a familia em Maputo.
A resposta foi de que;
eu tenho direito a ir ver a minha familia com tudo pago pelo governo.
Será que na Provincia da Zambézia hoje... volvidos 35 anos de independencia ainda não possímos professores ao nível de dirigirem bons projectos escolares na Provincia?
Qunato custa ao Estado este professor vindo do Sul?

Aquele é um projecto muito interessante financiado pelo governo de Esapanha, talvez por isso o zambezianao não pode ter acesso?
Nada mudou! mas muito piorou nos ultimos anos.
A Unidade Nacional ainda é uma miragem!
Uma realidade apenas nos discurssos políticos e não nos corações dos Moçambicanos; pelo menos dos que sofrem essa exclusão na sua pele.

Linette

Reflectindo disse...

Cara Linette

Em Moçambique precisamos de investigadores que escrevem factos não ficções, sobretudo ao que é tabu em falar ou escrever. Desta maneira teremos uma sociedade aberta e um povo respeitado. Sérgio Chichava está a fazer a sua parte a partir da qual podemos corrigir os erros e construindo a verdadeira unidade nacional. Sempre questionei o conteúdo da unidade nacional a que se jura pelos nossos governantes quando tomam posse. Existe algum programa do governo, dos partidos políticos com conteúdo "unidade nacional"? Se existe é público? Como podemos sair do discurso à prática?
Agora virou usa-se também o termo INCLUSÃO e muitos moçambicanos idolatram os discursistas sem o questionar. Há governação inclusiva em Moçambique? O que é isso de governação inclusiva? Como podia ser para uma verdadeira governação inclusiva?

Vamos reflectindo!

P.S. Pertences a uma das etnias zambezianas, claro.

Catava disse...
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Catava disse...

Hum, ai, ai! Lamento por muito porque quem sofreu e continua sofrer muito com esta doenca do tribalismo e' o coitadinho povo do Norte. Nao restam duvidas que a frelimo dizia que defendia uma unidade nacional estava e contra o tribalismo em Mocambique, mas fomos ver que a mesma e' que implantou e reforcou a pratica do tribalismo e regionalismo. A Renamo idem. Esta veio com a mania de que estava combatendo as praticas do tribalismo da Frelimo e porque a Frelimo era um partido maioridamente dirigida pelas pessoas do sul do Pais. A Reamo por sua vez enganou-nos, sendo assim um partido dominado pelos Beirenses.

Ai vem o MDM com a mesma historia. O MDM diz-se ser um partido para todos mas no fundo de tudo as decisoes apenas saiem na mente e bocas dos Beiresnses.

Sim isto e' verdade e ninguem pode desmentir. Agora estamos bem alertos. Veremos se os Beirenses terao uma corajem de votar na Maria Moreno como a Secteraia Geral (SG) do MDM. Acho ela ser uma pessoa capaz e e' do norte do pais.

A pergunta e' sera que a Maria Moreno sera' deixada pelos Beirenses a ocupar aquele cargo? Bem Veremos se O MDM e' ou nao um Partido tribalista neste contexto.

Paz.--Kimuana Amomu

Reflectindo disse...

Caro Catava

O que é necessário para combater o tribalismo em Moçambique?
Na minha opinião, o combate ao tribalismo passa por cidadãos corajosos que escrevem e falam abertamente sobre a problemática do tribalismo em Moçambique. Gosto bastante da maneira como o Jonathan McCharty e Manuel de Araújo abordam abertamente sobre a manifestação tribalista em Moçambique. É lamentável que nas ruas ou barracas quase todos os naturais da região a norte do rio Save se queixam da exclusão com base no tribalismo, mas que publicamente, por exemplo, na Assembleia da República muitos desses que lamentam nas ruas e barracas condenam severamente a Luís Boavida que reclama por estrada na Zambézia ou um outro deputado Tete ou Manica que reclama por água.
Há quase um ano critiquei um nosso conterrâneo que prometia punir Nacala-Porto se o candidato do seu partido não fosse eleito presidente daquele município.

HÁ REGIÃO QUE GANHA NISTO?

Eu não acho que haja alguma região que ganha pelo tribalismo e regionalismo, exceptuando a cidade de Maputo. Gaza, Inhambane e alguns distritos da província de Maputo são muito pobres. Estas zonas só servem para bater palmas feitos de orgulhosos que os seus governam. Quem na verdade ganha pelo tribalismo e regionalismo são famílias da "Nomenklatura". Veja como é o Conselho de Ministros por exemplo, ou outros postos superiores da função pública que estão tantos familiares (pessoas da mesma família) e amigos íntimos. Não é qualquer gazense, maputense ou manhambane que é nomeado ministro ou director nacional. O mesmo é com os nossos conterrâneos que servem para nos chamarem nomes feios porque apenas reclamamos água. Eles são geralmente da mesma família ou de círculo de amigos. Então, para onde vai o nosso país? O meu grande receio é de estarmos a permitir a criação e desenvolvimento de camadas sociais do sistema de CASTAS sem que necessariamente sejam do tipo da Índia.

Mas precisamos de uma luta, de gente que se sacrifica.

Linette Olofsson disse...

Sim concerteza! os nossos pesquisadores muitas vezes não a fonte buscar estes importantes testemunhos.
Se existem trabalhos semelhantes, não os publicam! ou talvez pensam publicar um dia quando já não fizermos parte deste Mundo?!

Nas zonas não "frelimo" isto é dominada pela oposição neste caso a renamo, os lideres comunitarios sao cautelosos...

Tiro o chapeu para o Chichava pelo trabalho apresentado
interessante é que ele é do Sul e foi a nossa provincia fazer este trabalho.
Não fe-lo com emoção mas com conhecimento que a ciencia exige.

Alguns dos nossos investigadores vao as sedes do distrito e recolhem dados ou vão ao partido frelimo da localidade; Nao digo que sejam todos!
Deveria aparecer mais trabalhos desta natureza e com este nível...

Um político de renome ofereceu-me um livro que me ajudou muito a compreender o que verdadeiramente se passou no incio do conflicto armado entre a renamo e a frelimo e foi escrito por um estrangeiro de nome CRISTIAN GEFFRAY, As CAUSAS DAS ARMAS.
ANTROPPLOGIA DA GUERRA CONTEMPORANEA EM MOÇAMBIQUE.

Reflectindo usam a palavra Inclusão graças a força e a pressão que a comunidade internacional fez após a exclusão dos partido na corrida eleitoral.

A palavra INCLUSÃO foi usada pela primeira vez como uma exigencia pelo nr 2 da embaixada USA Todd Chappan mais G19 nos encontros com a CNE e PR.
Eles foram mais longe e disseram;
as eleições são um acto de inclusão e nunca de exclusão...

Se me dizes que pertenço a uma etnia na Zambézia, penso que será a Sena, meu pai filho de um emigrante Mauriciano e mãe Sul Africana, ele nasce no Chinde, no Chinde é dominada pelos cenas imigrados de Sofala...