sexta-feira, setembro 30, 2011

Ano Samora Machel

Por Ricardo Santos

A primeira mostra de
uma autêntica vocação política é,
em todos os tempos,
que um homem renuncie
desde o princípio
a exigir aquilo
que lhe é inalcançável.
(Stefan Zweig)

Como cidadão e patriota, e apenas nesse contexto, uma das características que sempre apreciei em Samora Machel foi a sua frontalidade e até, imagine-se, bom senso analitíco. Foi um homem de poucos estudos formais, mas extremamente intuitivo e inteligente. O excerto de alguns raros textos políticos a sí atribuídos,
 certamente refinados com a pena intelectual de Aquino de Braganca, ou de Carlos Adrião Rodrigues em algumas poucas ocasiões, mostra-nos que entre Samora Machel e a ala do político experimentado Marcelino dos Santos, muitas vezes vulgarizada pela tese peregrina como sendo a de todos os intelectuais da FRELIMO, houve uma rotura politica clara na visão dos caminhos libertários do novo Mocambique. Por exemplo, Samora percebeu antecipadamente que, uma vez conquistada a independência, não era vantajoso entrar em guerra aberta com vizinhos poderosos militar e economicamente, mas Marcelino dos Santos, um autêntico conselheiro Acácio da FRELIMO, foi eficiente e matreiro, induzindo-o a entrar em confronto aberto com aqueles. Primeiro, com a Rodésia do Sul, ao fechar unilateralmente as fronteiras com aquela colónia britânica rebelde, em cumprimento das resoluções da ONU, que por sua vez prometera antecipadamente a Moçambique a devida compensação militar, diplomática e até financeira, uma vez que ali se esgotava mais uma fonte importante de divisas de Moçambique, na altura a amortecer as ondas de choque conjugadas da Crise do Crude de 1973 e da fuga massiva de quadros qualificados do ex-aparelho colonial, esta também, induzida muitas vezes pela ala radical da FRELIMO sobretudo após o 7 de Setembro. E com a RSA, primeiro com o fim do pagamento das remessas dos mineiros em Krueger Rands (ouro), por causa da intransigência dos ideólogos da ala de extrema-esquerda da FRELIMO também. E posteriormente, ao colocar-se Moçambique como mais um peão da Guerra Fria em linha com as orientações ideológicas há muito dimanadas do COMECON e que haviam já começado com os antecedentes internos no movimento de libertação que culminaram com o assassinato de Eduardo Mondlane. Para mim, em todas decisões colegiais de Samora, politicamente desastrosas, na maior parte das vezes, esteve o dedo inquisidor de Marcelino dos Santos e sua entourage de intelectuais de esquerda. Quando Samora pôde “rebelar-se” deste colete de forças ideológico, Moçambique conheceu a espaços, algumas das decisões mais humanizantes do pós-independência, ainda que muitas vezes polémicas e até questionáveis nos dias de hoje, como é o caso das Ofensivas Políticas e Organizacionais, que evidenciaram o quanto Samora já era incapaz de delegar e fazer cumprir as suas orientações de Estado junto de seus ministros e directores. Nomeações, demissões e decisões no calor dos comícios-tipo “É ou não é?” estavam na sua ordem do dia, revelando as fissuras progressivas do regime, tal como implicitamente reconhecido em livro por Jacinto Veloso na obra “Memórias em Voo Rasante”.
Paradoxalmente, a morte de Samora Machel abriu as auto-estradas para um longínquo Acordo de Paz em Roma, na convicção de que com ele vivo, e antes de Novembro de 1986, nós teríamos certamente invadido o Malawi num outro exercício megalómano induzido pela ala radical de Machel no quadro da Guerra Fria, o que resultaria numa enérgica retaliação militar de muitos Estados da Commonwealth contra nós e o Zimbabwe, incendiando toda a África Austral. Estaríamos muito provavelmente numa situação semelhante à da Costa do Marfim de Laurent Gbagbo. O que sendo, teria sido uma nódoa negra muito feia na folha de serviços brilhante de Samora Machel, um líder de cariz populista e por vezes até demagogo.
Uma tentativa de construção do perfil politico de Samora, mais ou menos maquilhado por Aquino de Bragança e sua equipa de intelectuais de extrema-esquerda é feita na publicação de Machel (O processo da revolução democrática popular em Moçambique (1970?). Maputo: Departamento de Informação e Propaganda, 1976, in Colecção estudos e orientações, Instituto Nacional do Livro e Disco, 1980), que é um condensado contendo muitas passagens já aludidas uma outra publicação anterior da autoria de Elisio Martins (Eli. j. e. mar., Portugal e capital multinacional em Moçambique 1503-1973, Vol. II, African Studies Editorial, Denmark, 1975), intelectual moçambicano supostamente emigrado na Dinamarca que nunca ninguém conheceu pessoalmente, e nem se sabe se ainda é vivo. Curiosamente, ambas, são obras cuja distribuição se fez timidamente no restrito circuito de intelectuais de então. Porque o Poeta Nasce, o Orador Faz-se, lá diz o velho ditado, assiste-se-lhe aqui a mais um péssimo exemplo disso.
Não deixa portanto de ser irónico, o endeusamento de um homem simples e autêntico como Samora Machel nos últimos tempos, e por todos os azimutes mediáticos, com a bitola dos engajados “intelectuais do governo”, muito deles na época, encostados num canto pelo defunto líder por causa da sua ambição desmedida e ganância pequeno-burguesa. Samora, o Desportista, Samora, o Pai, Samora, o Engenheiro, Samora, o Jurista, Samora, o Economista, Samora, o Historiador, Samora, o Humilde, Samora, o Sociólogo, Samora, o General, reivindica-se amiúde por aí. Só nos falta ouvir falar de um Samora, o Messias na Terra, capaz de curar os enfermos, dar vista aos cegos, ressuscitar os mortos num determinado dia “D”. O que não se faz para fortalecer a imagem de um partido hegemónico, mas hoje com os valores genuínos que ditaram a sua génese, diluídos e subvertidos pelo som da máquina calculadora... mas que ainda mantém todo um Moçambique atrelado a si e sob seu compasso. Política à moçambicana, no ano Samora Machel. E da preparação de um Congresso em 2012 também!
Distraídos andam também os muitos palestrantes-militantes “new wave” que até fazem fila para falar e serem bem vistos lá do alto. Certamente, por causa da sua juventude e prévia domesticação mental, não lhes é permitido discernir que não havendo mais teocratas do Marxismo hoje a moldar ideologicamente a nossa sociedade como nos anos 70 e 80, alguns pensadores “naive” lhes proponham como antídoto social alguma ideologia Machelista em seu lugar, a pretexto da recuperação de uma consciência patriótica que se foi esvaindo de 1986 para cá e assim fazermos de conta que nos continuamos a bater contra uma diabólica mão externa. Porque, logo no início do nosso socialismo existiram dificuldades de crescimento. Mas depois, sobreveio o crescimento dessas dificuldades que até hoje prevalece com números bem sólidos, mesmo com bolchevismo morto e enterrado há mais de 20 anos na ex-União Soviética. Porque afinal, os que nos governam até hoje, são os mesmos actores e ideologia que permanecem agarrados aos seus dogmas, enquanto cobrem o seu propositadamente desinformado eleitorado com o novo verniz perfumado do Capitalismo do Extremo Oriente. E quando ele estala às vezes, a verdadeira face marxista-leninista reaparece propondo velhas soluções para novos problemas, como por exemplo o ressurgimento de aspectos peculiares da nossa mal-sucedida aventura socialista, que hoje até parecem anedóticos. Soluções de um tempo onde toda a militância tinha emprego garantido. Apesar de toda a militância gerar emprego, quase ninguém fazia algo de construtivo, pois a prioridade era escangalhar o passado colonial e capitalista. Apesar de quase ninguém fazer algo de construtivo, todo o plano era sempre dado como cumprido com sucesso. Apesar do plano ser sempre cumprido, os cofres do Estado estavam sempre vazios, fazendo jus à austeridade proletária de ‘contar com as nossas próprias forças’. Apesar dos cofres do Estado estarem vazios, as pessoas foram sempre inovando o modo de suprirem as suas necessidades básicas. Apesar das pessoas descobrirem modo de suprirem as suas necessidades básicas quase toda a gente acabava por “desviar recursos” do próprio Povo. E finalmente, apesar de toda a gente “desviar recursos” do próprio Povo, nunca ninguém do circuito dos fiéis militantes fora apanhado, porque a responsabilização era militantemente colectiva e a distribuição da culpa igualitariamente socialista, por causa das “nossas insuficiências...”.
E quanto ao exercício quotidiano dos “intelectuais do governo” da época, que pariram as duas gerações dos actuais, não obstante a crítica e a auto-crítica serem ‘comiciadas’, encorajadas e alardeadas pelas mais altas esferas do Partido e Estado (terminologia da época, teimosamente em voga nos nossos dias...), a auto-censura foi a chave de quem conheceu o sucesso profissional, carreira, regalias e salário condizente. Uma militância intelectual que não pensou quando deveria. Se pensou, não o disse a ninguém. Se disse o que pensava, não o escreveu em lado algum. Se pensou, disse e escreveu, não assinou, dando origem ao famoso pseudónimo, tio-avô do maranhal de opinadores sob anonimato que pululam nos mass-media actuais. Se pensou, disse, escreveu e assinou, não se surpreendeu com a sua colocação no patamar mais baixo da hierarquia do poder, e conformou-se exilando-se num bar de escrivinhadores de estórias de tendências suicidas falando com os copos vazios dos seus antigos correligionários.
E não obstante as inúmeras coincidências destes heróicos tempos com os vícios actuais do sistema neoliberal que adoptámos em 1986, há quem ainda defenda que estas são as melhores soluções que devemos transmitir às nossas gerações vindouras...

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